Recordar é viver - A mais velha aluna viva da UC

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Chong Li
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Recordar é viver - A mais velha aluna viva da UC

Mensagem por Chong Li »

Maria Virgínia tem 107 anos de idade. É a mais velha aluna viva da Universidade de Coimbra. Fundou a primeira república feminina, privou com Salazar.

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"Nasci no Porto a 3 de Abril de 1899, numa casa simples mas bem arranjadinha na Rua de Cedofeita, onde outrora vivera Carolina Michaëlis”, a primeira mulher a leccionar numa universidade portuguesa, diz Maria Virgínia com entoação aristocrata. Quis o destino que ela também fosse pioneira, entrando na Universidade de Coimbra na primeira turma onde foram admitidas mulheres. Decorria 1917, ano da aparição de Fátima, quando foi para Coimbra cursar Físico-Química, tendo fundado a primeira república feminina, a ‘Casa Independente de Raparigas’. Com rara tranquilidade, pausada e delicadamente, conta que gosta do Porto e das suas gentes, “pessoas sinceras e dedicadas ao bem”, mas não nega que é Coimbra que mora no seu coração. “Coimbra é um encanto. Um amor e uma paixão. É linda. O Rio Mondego que vai devagarinho para o mar: Ó Coimbra do Mondego/ E do amor que eu lá tive/ Quem te não vê anda cego/ Quem te não ama não vive”, canta, repete a última estrofe, cadenciada, com voz de falsete, profundamente, “porque é sentido”.

Maria Virgínia tem estima por Coimbra, Coimbra estima Maria Virgínia. Desde o início do ano que já lhe fizeram duas homenagens: “Em Santo António dos Olivais e na Faculdade de Engenharia, onde esteve presente o reitor, o presidente da Câmara e muitas centenas de amigos, ex-alunos e admiradores. Quem também marcou presença foi o Coro dos Antigos Orfeonistas que cantaram maravilhosamente”, esclarece a filha, Ana Paiva. “A minha mãe cantou com eles. Foi um sucesso. Ainda tem uma boa voz. E toca piano e guitarra.”

“Nessas cerimónias, falei pouco mas cantei muito. Porque eu estou sempre disposta a cantar”, conta Maria Virgínia enquanto endireita as costas, compõe o banco, aquece os dedos e toca. Canções de Coimbra mas também modas tradicionais que transporta na memória desde tenra infância. “Quando era menina estudei piano e andava a cavalo, o que, para a época, era um pouco escandaloso. Ia, montada num cavalo branco, atrás do meu paizinho, que andava de terra em terra a dar consultas médicas.”

Repete que teve “uma vida maravilhosa. A minha mãe morreu quando eu era pequenina, mas tive um pai excepcional. Tem o nome dele, dr. Ferreira de Almeida, gravado nas termas de São Pedro do Sul, uma terra muito especial”. E mais um verso: “Olha o Vouga entre verduras/ como vai devagarinho/ parece que vai pasmado/ de ver tão lindo o caminho.” “E é verdade. Andei muito no Rio Vouga. Tomei muito banho nas suas águas puras. Havia uma barraca especial para as senhoras se mudarem e uma zona reservada a banhos femininos. Aquela região é um encanto. E o meu pai era muito estimado.”

João Ferreira de Almeida, que de médico de província passou a Governador Civil de Viseu e a director do jornal ‘Povo das Beiras’ e das termas locais, tinha uma irmã casada em Londres para onde Maria Virgínia gostaria de ter ido estudar. Por insistência do pai ingressou em Física-Química na Universidade de Coimbra e nas férias voltava a São Pedro do Sul ou iam para casa do tio Tristão, em Espinho, “cidade com uma praia muito simpática”.

A memória próxima é curta, mas, “graças a Deus, a minha vida foi linda. Porque tive um marido encantador, filhos encantadores, muita gente amiga”.

O marido morreu há 36 anos, mas Maria Virgínia não perde uma oportunidade para falar dele. “Chamava-se Ernesto Pestana, combatera em França durante a 1.ª Guerra Mundial e era comandante da tropa. Os soldados adoravam-no. Uma pessoa de uma bondade sem par, encantadora, que mais tarde foi Governador Civil de Coimbra.” Conheceram-se quando “eu ia cantar aos teatros e ele ia ver-me. Foi no Teatro Sousa Bastos que, quem sabe se pela minha voz, se declarou”, diz com inesperada vivacidade, voz doce mas firme.

“No dia em que concordei casar com ele, mandou-me ir para a janela à noite e olhar na direcção do quartel, que ficava situado no Mosteiro de Santa Clara. Ele preparou um soldado com uma iluminária para cada um dos janelões e toda Coimbra viu essa linda homenagem que ele me fez. Era um homem maravilhoso”, enfatiza com jovialidade. Casou aos 32 anos e teve o último dos seis filhos com 47. Maria Virgínia aproveita situações da conversa para lhe associar um verso ou uma canção: “Atirei com uma laranja/ de Santa Clara ao Caís/ para ver se te esquecia/ cada vez me lembras mais.”

Daquele tempo lembra os estudantes, muito respeitadores, “porque antigamente era assim”. E agora? “Já lá não ando, não sei como é. Quando eu andava na faculdade os meus colegas, homens, tratavam-me por excelentíssima senhora, respeito que me era merecido.”

Foi reagindo contra a segregação que não permitia às alunas envergar capa e batina nem participar nas actividades estudantis, que criou a primeira república feminina na cidade. “Foi na Casa das Cruzes, nos Palácios Confusos, uma casa com azulejos que eu habitei em caloira. Os alunos faziam-nos serenatas. Na Rua dos Grilos cantavam para nós ouvirmos. Éramos quatro e tratavam-nos como princesas. Os estudantes eram muito bonzinhos. Quando passávamos na Rua dos Grilos em direcção à faculdade, havia sempre um rapaz a gritar: “Não percam, venham depressa, deixem os bifes e os ovos estrelados.” À tarde, quando regressávamos a casa, diziam das janelas: “Nós não somos os malcriadões que vos falaram de manhã. Nós só dizemos rosas e violetas.” Ao lado de Maria Virgínia, caminhava “uma rapariga muito linda, Maria Teresa Cabral da Silva Basto, parente de um lente, colega de curso e de casa. De maneira que tivemos facilidades que nem todas as raparigas da faculdade tiveram”, explica com incrível sanidade.

Por essa altura de 1918 conheceu, “ui se conheci”, António de Oliveira Salazar. “Como ele vinha de Santa Comba Dão para dar aulas como assistente de Ciências Económicas e eu vinha de Viseu, encontrávamo-nos domingo à tarde no comboio para Coimbra. De maneira que havia entre nós uma certa ligação e respeitosa estima. É engraçado que, quando ele foi embora para Lisboa, ofertou-me a sua mobília. Uns grandes aparadores, mesas, cadeiras de madeira muito boa. Porque ele recebia pessoas de categoria. Tive sorte em herdar essas coisas. Simpatizava com ele, mas nunca liguei à política.” Oliveira Salazar vivia em regime de república com o padre – mais tarde cardeal – Cerejeira numa casa próxima da república de Maria Virgínia. “Ele era sério, mas simpático. Alegre e muito respeitador. Havia uma ligação forte entre ele e um tio meu, Francisco Tristão Ferreira de Almeida, que pensou em ser padre.”

Todos os dias, pela manhã, Maria Virgínia lê o jornal, sem óculos. “Felizmente, continuo a gostar muito de ler.” Adora Camões. E, em dueto com a filha, recita: “Alma minha gentil porque partiste/ Tão cedo desta vida descontente/ Repousa lá no céu eternamente/ E viva eu cá na terra sempre triste.” Conheceu pessoalmente Miguel Torga, “uma pessoa que me encantava pelo seu talento”, partilhou com condes e marquesas, os de Leirós e os de Reriz, “a baronesa de Palme com quem passeávamos de landau – carruagem com duas capotas puxadas por cavalos –, a família de Manuel Alegre que vivia num palácio de São Pedro, todos muito simpáticos comigo”.

Durante 40 anos deu aulas no Liceu Infanta Dona Maria, em Coimbra, de onde só saiu para se reformar, aos 75. “As alunas eram muito minhas amigas. Tive alunas encantadoras, que é esse o termo.” Ensinava Física, Química e Desenho, “sempre com muita alegria”.

E volta a cantar “Coimbra do Mondego”, agora colado a um tema popular, “Ora põe aqui/ Ora põe aqui o teu pezinho/ Ora põe aqui/ Ora põe aqui ao pé do meu/ Ai ao pôr/ Ai ao pôr do teu pezinho/ Um abraço/ Um abraço te dou eu”. “A minha mãe legou-nos centenas de temas populares. Cantigas que já não se ouvem, mas que na nossa família têm passado de geração em geração. Temos o sonho de registar isso em livro”, conta a segunda dos seis filhos de Maria Virgínia enquanto desfolheia o álbum de fotografias da progenitora, onde também se encontram “retratos dos 13 netos e dos 11 ou 12 bisnetos”. Ao seu lado, mãos aparando a toalha branca bordada à mão, Maria Virgínia volta a cantar Coimbra. Se a memória próxima está tão debilitada como a audição, todos os outros sentidos, bem como as recordações de um passado feliz e rico em histórias, estão inacreditavelmente no quase pleno das suas faculdades. Cola versos e canções, intervaladas com respostas curtas e incisivas. Levanta-se e senta-se com agilidade. “Tinha conhecimentos com pessoas de muita categoria, lentes da universidade. Quando havia festa na sala do capelo, nós tínhamos lugar nas tribunas”, relembra sem aparente saudade.

Não há certamente nem homens nem mulheres desses tempos ainda vivos. Maria Virgínia é um exemplo de existência “invulgarmente feliz. Nunca tive uma dor, nunca fui a um médico. Nem uma dor de cabeça me assolou. Sempre vivi sem nenhum vício, comportei-me sempre como senhora”. Gosta de passear. De sair. De viajar. Ana Paiva esclarece o segredo da longevidade: “Tem uma alimentação de bebé. Leite, sopa de legumes e um alimento completo, o Fortimel, que se vende na farmácia e que tem tudo quanto é necessário. Mas, mais importante do que isso, tem permanentemente um optimismo, uma alegria de viver e uma boa-disposição que é imensa e contagiante.”

O QUE DIZEM SOBRE MARIA VIRGÍNIA

Paulo Ilharco Nogueira, poeta e amigo


“Árvore de raízes profundas e escondidas, na terra que é o berço onde mãe mora, a árvore como quem aos Deuses ora, de pé dá viço a folhas ressequidas. O tronco é centenário e doutras vidas, a copa é mui frondosa e não descora, a seiva sara chagas, mágoas, feridas, e a sua sombra faz sonhar quem chora. A fragrância que exala purifica, ensina formas, desenvolve e educa os pulmões que lhe devem oxigénio. Por isso, árvore nunca partas, fica. Que a folha que tu dás não é caduca e um sonho ao pé de ti dura um milénio.”

Conceição Cortesão, aluna de Maria Virgínia no Liceu Nacional Infanta Dona Maria, Coimbra, no ano 1949

“Nunca conheci ninguém que vestisse tão bem e tão mal. Certa vez foi dar aulas com um sapato de cada cor. Alguém a fez reparar na distracção e ela justificou-se com o facto de não acender a luz para não acordar os seis filhos. Nas aulas gostava de contar peripécias da vida e nunca perdia a boa-disposição e o humor. Só dava um teste por período e as notas também eram atribuídas em função dos rostos. ‘Sabem meninas, a impressão das carinhas também conta’, costumava dizer. Primeiro fixava os olhos e só depois dava a nota final.”

Carlos Encarnação, Presidente da Câmara Municipal de Coimbra:

“A doutora Maria Virgínia é, sem dúvida alguma, um testemunho de vida, quer pela sua carreira universitária quer pela sua liberdade de actuação enquanto mulher. Um exemplo.”

Seabra Santos, reitor da Universidade de Coimbra:

“Ela teve o raríssimo privilégio de ter assistido ao Regicídio, à Implantação da República, à I e à II Guerras Mundiais, ao Estado Novo, a mais de 30 anos de Democracia, continuando ainda hoje jovem e sã como um pêro.”

Correio da Manhã
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Lino
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Mensagem por Lino »

Ora aí está um exemplo de longevidade!! Tudo isso contraria o provérbio "burro velho não aprende línguas"...
Coimbra tem mais encanto... terá?
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scarface
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Mensagem por scarface »

ela já acabou o curso? lol

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Mensagem por {mineirinha} »

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carlacs
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Re: Recordar é viver - A mais velha aluna viva da UC

Mensagem por carlacs »

Grande história de vida, gostei de ler! Aliás gostei tanto que por segundos até tive pena de não ter andado no D.Maria..mas foi só até ler isto:
Só dava um teste por período e as notas também eram atribuídas em função dos rostos. ‘Sabem meninas, a impressão das carinhas também conta’, costumava dizer. Primeiro fixava os olhos e só depois dava a nota final.”
Com as minhas conjuntivites ainda hoje lá andava!

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Lino
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Mensagem por Lino »

Infelizmente muitos professores ainda avaliam mais pelos olhinhos do que pela aprendizagem...
Coimbra tem mais encanto... terá?
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cjnmc
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Mensagem por cjnmc »

pessoas velhas mas com muito para contar....espero um dia ser assim :lol: ....relembrar com saudade a UC mas principalmente a Associação Académica de Coimbra....
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