A falta de visão está para Ernesto Soares como o F.C. Porto para o Benfica, isto é, um adversário de respeito numa fase importante da vida. Aos 84 anos e outros tanto de filiação, Ernesto Soares conquistou por direito o estatuto de sócio n.º 2 do Benfica. Já perdeu a conta aos clássicos a que assistiu, mas um teima em assombra-lhe a memória.
«O maior desgosto que tive foi no último F.C. Porto-Benfica [8.ª jornada], em que estávamos a perder 0-2, empatamos 2-2 e nos descontos perdemos 2-3. Preferia que tivéssemos perdido por 0-2. A derrota avolumou-se e no fim do jogo, que já devia ter terminado, o nosso treinador fez sinal ao Simão para a equipa andar para a frente. Na televisão viu-se o jogador dizer que faltava pouco tempo para o fim, que estava tudo tranquilo, e não é que o F.C. Porto fez o terceiro golo...», lamenta, ainda, Ernesto Soares, que sentiu a derrota como um soco no estômago.
Talvez por isso o reencontro de amanhã no Estádio da Luz esteja a ser vivido por este adepto com a euforia que os seus 84 anos lhe permitem. «Tenho esperança que o Benfica ganhe. Não vou à Luz, porque vejo melhor em casa. Vibro, grito se for golo, a minha mulher até barafusta comigo. Já fui meia dúzia de vezes ao novo estádio, mas vejo mal, só até meio do campo e não identifico bem os jogadores. Mas não fico nervoso com os jogos, como ficava um tio meu, por sinal do F.C. Porto, que até o médico lhe dizia você um dia fica-se!. Lamento muito, sofro bastante, mas o F.C. Porto tem de comer muito pão com côdea para chegar ao nível do Benfica», defende, ele que nunca ficou doente por causa de um resultado.
Não há muito tempo, Ernesto Soares admite que deu o campeonato por perdido. Consideração de que se arrepende, pois hoje está convicto de que se precipitou. «O Benfica começou a assentar, começa a ser equipa, apesar dos bons jogadores que sempre teve. E, presentemente, a minha esperança é a de que se o Benfica ganhar este jogo poderá ser campeão.»
Para Ernesto Soares, o F.C. Porto é um fenómeno recente e, nesse sentido, motivo insuficiente para ser temido pela sua equipa. «Houve uma altura em que havia o Benfica, o Sporting e os azuis... do Belenenses. O F.C. Porto era um clube de bairro, um clubezeco, não era o grande clube que é hoje. O que é certo é que nas muitas viagens que fiz, e nas quais conheci mais de 90 países, quando percebiam que era português diziam logo Ah, é de Portugal... Amália! Benfica! Eusébio!», lembra.
Mas não será a história a decidir o resultado e sim os protagonistas do relvado, a quem Ernesto Soares pede «união», o único estado de espírito capaz de resolver um desafio. Um golo de vantagem é quanto pede o sócio n.º 2 e na verdade quanto basta para a vitória da sua equipa, na impossibilidade de repetir-se um dos clássicos gordos de antigamente. «Lembro-me de um 12-2 [1942/43], de um 7-2 [1944/45] e mais um ou outro grande resultado... Quantos mais melhor, mas basta-me um golo!»
Ernesto Soares sente «um grande orgulho» por ser o sócio n.º 2 dos encarnados, tendo tudo começado «numa época em que não havia a tradição de agora de inscrever as crianças como associadas imediatamente após o seu nascimento». Nasceu, em casa, aos dez minutos de jogo de um Benfica-Sporting no campo das Amoreiras, a 7 de Maio de 1922. «O meu pai saiu com o meu irmão, então com cinco anos, e disse-lhe: se o Benfica ganhar o menino entra para sócio.»
E é nas pequenas coisas do dia-a-dia que Ernesto Soares, medalha de mérito desportivo atribuída pelo governo em Dezembro de 2006 e prémio carreira do Comité Olímpico de Portugal, se apercebe da idade que tem. «Há algum tempo, no Estádio da Luz, vejo quatro tipos a ler o meu diploma de sócio n.º 2. A certa altura diz um: já deve ter morrido há vários anos. Aproximei-me deles e disse-lhes: não, não, ainda estou cá.» E para assistir a mais clássicos, certamente.
Já não o único a pensar da mesma maneira

Porto era um clubezeco e agora é um grande, mas ainda tem de comer muito para chegar ao nível do Benfica e Sporting
