por
Manuel João C. Silva -
docente da FCDEF
A participação olímpica para além do óbvio
Sem o ruído de funileiros, cartomantes, cineastas, cirurgiões e outros iluminados dedicados a explicar o insucesso da delegação portuguesa, parecem existir condições para inventariar argumentos e ensaiar orientações para o futuro.
Apesar de termos levado nove elementos entre os três melhores classificados em ranking mundiais, jogos olímpicos precedentes e ainda campeonatos da Europa ou do Mundo [atletismo, esgrima, judo, tiro, vela], o comandante Vicente Moura não era obrigado a assinar um contrato-programa obrigando-se a quatro medalhas e 60 pontos. A improbabilidade constitui um dos principais atributos do fenómeno desportivo, tornando-o fascinante. Que o diga Pedro Póvoa, apurado a três meses da competição de Taekwondo, acabou por ser dos poucos contribuintes para os diplomas olímpicos.
Sabem os portugueses quantas medalhas foram conquistas por atletas do Wyoming ou do Dakota do Norte, estados sociodemograficamente correspondentes ao nosso país? Se a China ganhasse duas medalhas por cada 10 milhões de habitantes existiriam medalhas suficientes para distribuir?
Antigamente, os governantes aproveitavam a onda neurótica para prometer uma nova política para o Desporto Escolar. Desta vez, não tiveram essa desfaçatez. O Desporto Escolar, onde João Ganço descobriu Nelson Évora, é uma aposta intermitente e dependente dos jogos de sorte e azar. O subsistema funcionou com as receitas do totobola. Só entre 1999 e 2002, e muito por culpa do Euromilhões, esta fonte de receita desceu de 4.249.478€ para 2.548.314€, somando-se 484.377€ provenientes do OE. Apesar da anorexia orçamental, o programa registou 120 mil jovens escolares. Quanto tínhamos professores motivados não tínhamos pavilhões nas escolas, agora com as escolas bem equipadas, o Desporto Escolar eclipsou-se.
A penúria do desporto português não é específica de actual governo nem se circunscreve ao subsistema escolar. O desinvestimento tem sido disfarçado pela capacidade do associativismo desportivo assegurar a oferta desportiva a mais de 400 mil praticantes. As federações com estatuto de utilidade pública desportiva funcionam com dotações inferiores a 100 euros/atleta/ano. Valores incompatíveis com os investimentos necessários nas tecnologias de optimização do rendimento no desporto contemporâneo, como bem pode atestar a empresa portuguesa que trabalhou com a NASA e o Instituto Australiano do Desporto para produzir o fato do nadador Michael Phelps.
Elogie-se o apoio de 15 milhões à preparação olímpica. O valor é substancialmente superior ao disponibilizado no ciclos anteriores com a vantagem de ter sido calendarizado e rigorosamente cumprido. Na arena internacional, a quantia supramencionada é inferior aquilo que a Austrália está a investir para tentar uma medalha nos Jogos Olímpicos de Inverno. A mesma Austrália, sabendo que o apuro da forma desportiva em esforços de longa duração resulta de um ciclo de treino onde os atletas ficam vulneráveis a episódios críticos de depressão imunológica, transportou os seus nadadores para Pequim, alugando um avião com ar purificado e ventilado em máscaras individuais Este detalhe custa o equivalente ao orçamental anual da preparação portuguesa.
Por cá, fui professor de dois atletas presentes em Pequim. A lançadora do martelo que confessou não ter sido talhada para este tipo de competições treina no Juventude Vidigalense, estuda com aproveitamento na Universidade de Coimbra, tendo como substrato a dieta dos serviços sociais. Quantos de nós conseguiríamos nestas condições estar entre os 40 melhores do Mundo naquilo que sabemos fazer. Outra aluna, tendo recebido a convocatória quando a comitiva já estava em Pequim, viajou numa carreira aérea comercial e depois de dezenas de horas de viagem afirmou-se entre a melhor vintena do planeta.
Estamos perante problemas culturais, demográficos e económicos que nos devem levar à não comparação com outros países. É preferível elogiar o facto de termos levado a Pequim mais de 70 atletas ou ainda termos portugueses na elite mundial de 17 modalidades. Mais importante, em modalidades como o atletismo, onde tradicionalmente marcámos presença no pódio, o sucesso desportivo transferiu-se de especialidades sacrificais (como a maratona e os 10 mil metros, Carlos Lopes, Rosa Mota e Fernanda Ribeiro) para desempenhos onde só é possível alcançar o pódio com tecnicidade e investimento tecnológico. É isso que se espera para outros sectores sociais e de desenvolvimento económico.
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